Crioulização e cinema:
reatualizando imaginários


Artigo publicado e série de colagens digitais desenvolvidas a partir de frames do filme Limite de Mário Peixoto (1931) publicadas na revista Esferas em 2022.

Esferas, ano 12, vol. 2, nº 24, maio-agosto/2022.
ISSN 2446-6190




O deus sol e a cidade prometida


Precisamente no epicentro da ilha do nada, mesmo no grau zero a mercê de toda sorte e sem nenhuma garantia, em um dia que ainda não poderia ser como tal designado já que em nada se diferenciava da noite ainda, foi pousado, com a delicadeza do pouso de uma pena, um ovo. Por si mesmo chocado, o ovo gestava no interior de sua fina casca aquele que à luz iluminaria e à vida, finalmente, viveria, tudo o que se conhece agora, então se faria. Rá, o deus Sol.

Tudo aquilo que ainda não se via, era agora visto. E não vendo-se logo, não existia, naturalmente. Os olhos, protagonistas de toda a razão, agora cegos pela luz refletida em tão brancas estruturas concretas e de casca mesmo muito fina. Vê-se de cima a cidade prometida na ponta do dedo rijo que marca a cartografia, duas linhas que se cruzam, no barro e na fotografia, em meio ao mais completo nada. Brasília.

O faraó ordenou então a seus súditos, os funcionários, os sacerdotes, os artesãos, os artistas, os comerciantes e os escravos, que fossem cumprir a profecia. Nada a temer teriam pois já no sonho estava dito, a cidade proveria, com abundância tal necessária, leite e mel. No meio do deserto de sol escaldante e aridez profunda, protegidos pela redoma de céu, faria oásis a quem tivesse bravura. Aos sonhadores, nomeadamente. Trabalhadores.

Os cabelos eternos e negros de tamanha poesia que se arrastam pelo cinza vazio e escorrem por cada um dos ombros, os braços abertos pregados ao eixo que define com precisão científica a rosa para onde sopra a ventania. Um balé de automóveis em meio a sinfonia de cigarras. Caminhar é um horizonte, é eterno, é longe e é sempre.

Vejo-te a partir do baixo de uma mangueira e quero que toda ciência esteja errada, não me caia uma na cabeça. Quanto tempo dura uma cidade prometida, digo, o sonho, quanto tempo dura?

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Texto publicado no jornal Jararaca n.11, abril/2020. Página 16. Brasília, No Setor.



Pequeno manuscrito de jardinagem


Havia em frente a minha casa um grande pé de pequi. Já lá estava quando chegamos e antes mesmo que houvesse casa. Todo imponente, floria vez ou outra e dava fruto tanto que enchia o congelador e metia cheiro por toda a geladeira. Pois, havia de se congelar o caroço dos frutos que dava, eram mesmo tantos e de uma carne amarelada e suculenta, massuda mesmo, cheio de substância e de vida. E tinha os braços assim todos abertos em galhos tortuosos que pareciam se espreguiçar ampla e preguiçosamente antes que acordássemos para então, assim que sobre si puséssemos os olhos nas primeiras horas da manhã, já estava todo entregue aos raios de sol que banhavam cada uma de suas folhas, ásperas e verdes, abertas como mãos de tamanhos variados com as palmas viradas para cima.

As folhas eram verdes como eram verdes as paredes da casa e, com ela, formavam uma paisagem. Logo que chegasse, era mesmo a primeira imagem que via – o pé de pequi em frente e a casa logo atrás. O que não se sabia, entretanto, é que dentro do pequizeiro fazia-se também morada. Uma noite de chuva forte e ventos uivantes revelou o que de mais secreto escondia o pé de pequi. No profundo de seu interior vivia uma gigante e bem articulada comunidade de formigas-bunda-cor-de-cobre, cientificamente falando, fizeram ali um formigueiro. Para tanto, digo, para que o segredo fosse revelado, a chuva derrubou, com alguma violência, a árvore inteira, a partir mesmo de seu caule, última conjectura com a terra e fonte de toda energia.

As paredes dessa soberana estrutura estavam ocas da matéria original da qual foi fundada, eram agora preenchidas por tubulações em barro fino, meticulosamente arquitetados para o transporte, a comunicação e a sobrevivência das formigas. Um condomínio de alto padrão com área de lazer, coworking e berçário, este que vi com meus próprios olhos. Ovinhos brancos diminutos perdidos em meio à grama logo após um golpe certeiro da peixeira. A casca grossa do pé de pequi já não continha em si o essencial aos pés de pequi e mesmo às árvores, a seiva já não lhe corria pelas veias e o que se pergunta é justamente o que, então, a manteve de pé por tanto tempo quanto o tempo necessário à edificação e ruína de tão poderoso império. A estrutura, quiçá, tão bem encaixada em posição que estava tinha era tempo, manteve-se imóvel frente ao bravio avanço das formigas.

Elas que transformam as coisas em pequenos pedaços, dividem os recursos em pequenas amostras-mundo, para então a consumirem ou tão logo a estocarem. Em alguns dias, o tempo tal que o trabalho exige, teriam dividido o pé de pequi em fragmentos mínimos ou dele fariam estrutura central para expansão do formigueiro, tão logo durassem os materiais. Construindo e destruindo, transformando e aproveitando o que não pode transformar, o formigueiro avança. E mesmo já oco, o pé de pequi dava frutos, curioso. Ao cair espalhou pela relva verde pequis vários. As orquídeas que viviam atreladas aos galhos sob a sombra das folhas do pequizeiro, foram-se todas ao chão também. Ali ficaram atém que encontradas e devidamente realocadas nos galhos da buganvília que está sempre em flor e lilás. Tão antigas quanto a história que conhecemos, as orquídeas carregam em si o código do mundo. Antigas quanto a própria primavera. Criaturas enormes presenciaram o desabrochar de uma orquídea que, tão longe estavam, decerto não passava de um ponto pequeno de cor. As orquídeas talvez passassem despercebidas não fossem aqueles que dela se aproximaram até tocarem seus lábios entreabertos. Como é belo cultivar um jardim.

A vida dá conta dela própria já que é tudo da mesma matéria orgânica, o que muda é o tempo até que o grande vire tão pequeno, o tempo que leva o trabalho que dá. Chegar à síntese, precisa, cientificamente falando para então transformá-la.

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Texto publicado no jornal Jararaca n.10, março/2020. Página 6. Brasília, No Setor.




Do fundo gosto


O gosto e geladeira me faz remeter à memória da própria geladeira, por assim dizer, tudo o que já um dia esteve guardado dentro dela. Lembrei-me, especialmente hoje, de um fundo gosto que um dia existiu, dentro dela, uma abóbora num saco plástico. É assim, dessa maneira, pasmem, que se guarda a abóbora, dentro de um saco plástico. Por vezes vende-se assim até, pasmem. Abóbora sem casca, picotada. kilo. bandeja de esferovite, um plástico, uma etiqueta em cima. Bio.

E um só gosto de geladeira, é impressionante, faz-me lembrar de muitas outras geladeiras. Não em Portugal. cá o tal gosto de geladeira sabe a frigorífico. Cebola, é sabido, não sabe bem, pelo menos não na geladeira. É aquele gosto amargo no fundo da memória do qual não se quer lembrar mas, desavisadamente, lembra-se. Sabe mal, principalmente quando vem intrusa na torta de chocolate. tão fofinha e doce mas, no fundo, gosto de geladeira. Mais especialmente, geladeira com gosto de cebola. É terrível, como sabes.

Temos aí, pronto, uma grande invenção, genial diria, a geladeira. Muito boa ideia. é verdade, e quando bem utilizada. uma maravilha. Para conservar as coisas frescas por um tempinho, dar a elas mais tempo de vida antes que apodreçam e retomem ao ciclo natural de todas as coisas, comida de ver mes, adubo na terra. Mas é um tal de colocar na geladeira coisas p'ra lá de podres embalsamadas cm gordura pura, química finíssima, envoltas em uma bela embalagem colorida com o podre conteúdo, também esse, cheio de cor e aromatizantes, pasmem, idênticos ao natural.

Ouvi dizer uma certa vez que tem quem morra e passe o resto do tempo de não-vida na geladeira, que é para quando a coisa se resolva, razão tal da morte, acordem o corpo, deem nele um jeitinho, atribuam a ele um gosto, uma alma. e volte à vida, propriamente dita. Problema seria é se viesse com o gosto da geladeira em que estava. Imagina, um gosto de rataiana mesquinha e amargurada que por sorte ou destino, na última da hora, caiu e foi congelada naquela mesma gela deira que por anos será conservada. Isso é que era. Os velhos preconceitos, a velha ignorância, a covardia, a hipocrisia. degelados e novam ente saborosos, mas no fundo, sabe mal. um fundo gosto amargo de coisa velha que já estava mesmo a apodrecer metida em um saco plástico.

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Texto publicado no jornal O Bonfim N.5, outono/2019, página 9.



Dos dias de Sol


Acordei e pronto. Suspendi a persiana da janela do quarto e o Sol estava brilhando no céu limpo e azul, igualmente a todos os outros dias daquele ano. Pela Baixa do Porto, já havia alguns meses, era verão todos os dias.

Cheguei no inicio de setembro e trouxe mesmo poucas roupas para o calor. Para o inverno sim, estava preparada. Trouxe luvas, gorro, capa de chuva, um casaco pesado forrado com pelinhos, uma bota de borracha. umas calças de veludo.

As botas de borracha, só quem sabe é que sabe, servem só mesmo para os dias de chuva. Se usadas em dias quentes, deixam os pés sufocados, no frio, sem chuva, os pés ficam gelados. Nada poderá ser feito com as botas de borracha, me parece, até que chova.

Tomei um banho não muito quente, tirei as roupas do estendal e, a seguir, já logo pendurei as roupas acabadinhas de lavar. Tenho lavado com bastante frequência as roupas já que não tenho muitas, como disse, e como é suposto que o inverno chegue logo, mesmo que com algum atraso, reluto em comprar roupas novas.

Os dias não são assim tão quentes, é verdade, disso não se pode reclamar. O Sol está sempre a brilhar mas a temperatura é amena. São dias medíocres, diria. Nem quentes, nem frios, sempre iguais, nada de novo. Essa coisa de serem dias sempre iguais, igualmente medíocres em suas novidades, me faz acreditar que é sempre o mesmo dia, todos os dias.

Olha, ontem mesmo era domingo e nem me lembrava. O ontem e o hoje não diferem entre si em nada, o senhor está na Batalha a dar milho aos pombos de tardezinha, as senhoras continuam a olhar pelas janelas o movimento da rua, as prostitutas ainda esperam nas entradas dos prédios e a sueca rola solta no Jardim é verdade.

Não sei mesmo o que faço com as roupas de inverno. As calças de ganga cortei pelos joelhos mas, assim que o tempo mude, terei que comprar umas novas, de certeza. Fui até à loja da esquina comprar frutas. A coisa boa nisto tudo é que as cerejas são docinhas. Sinto falta das castanhas, boas e quentes. Sinto falta do frio também. é isso, sinto falta do frio. Talvez se ele chegasse amanhã, desavisadamente, eu não achava ruim.

Os azulejos do prédio em frente parecem desbotar a cada novo dia. A sujeira encrostada nos cantos da fachada estão mesmo nítidas, fico ali imenso tempo imaginando há quanto tempo aquela sujeira está ali impregnada.

As pessoas andam pelas ruas com roupas muito parecidas quando não iguais, as vitrines têm as roupas na moda, isso sim, são os chapéus, bonés, viseiras, já ninguém pode mais com tanto Sol na cabeça. E os dias são enormes, há muitos dias que os dias são assim enormes. Será que chegará o dia em que tan1bém as noites não irão mais existir? Será que esse dia já existiu? É boa hipótese para explicar essas persianas impenetráveis. Mas isso é coisa para uma outra oportunidade.

A bota de borracha fiz de vaso de plantas. Foi só fazer um furo na sola para escorrer a água, colocar um bocadinho de terra dentro, dar uma amassada assim com a mão, colocar um pedacinho do cacto que estava no outro vaso e pronto. Cacto é planta de Sol, foi o que eles disseram. Bem, a ver se amanhã volta o mau tempo.

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Texto publicado no jornal O Bonfim N.4, inverno/2018, página 10-11.



Praia: práticas para ficção


Dissertação de mestrado da Maria Eduarda Filomeno Affonso.
FBAUP - Faculdade de Belas Artes.

Repositório Aberto da Universidade do Porto. Publicado em 13/11/2018.